Localização
A Região Hidrográfica do Guaíba, segunda maior do estado (atrás apenas da Região Hidrográfica do Rio Uruguai), sofreu em abril/maio de 2024 e ainda sofre até a data de escrita deste texto uma temporada de chuvas volumosas que varreram cidades inteiras e contribuíram para a dramática situação de inundação de cidades da região metropolitana de Porto Alegre, atingindo até cidades ao Sul do Estado. O Rio Vacacaí, dentro da Bacia do Vacacaí-Vacacaí Mirim e no limite ocidental da Região Hidrográfica do Guaíba, banha parte da zona urbana do município de São Gabriel e sua mancha de inundação junto com os transtornos em sua decorrência será analisada nesta publicação por meio de operações espaciais comuns em sistema de informações geográficas.
Enchente de Abril/Maio
Apesar de não ter atravessado a cidade com tanta violência como em outras cidades, a exemplo do Rio Pardinho em Sinimbu, o Rio Vacacaí, entre fim de abril e início de maio, alcançou cota (91 m acima do nível do mar) que supera a cota considerada normal (86 m acima do nível do mar), atingindo vários domicílios e obrigando que pessoas saíssem de suas residências. Os bairros atingidos foram: Baltar, Menino Jesus, 3 de Outubro, Vila Maria, Jardim Europa e Bom Fim, este último ficando isolado de todo o restante da cidade por conta da água que invadiu a entrada para a ponte que liga o bairro do extremo leste aos mais de 30 bairros da zona oeste. Há a ligação pela rodovia federal BR-290, contudo, o trajeto mais que duplica de distância do que o trajeto feito pela Ponte Engenheiro Alfredo Bento Pereira Filho. Bairros Centro, Bela Vista e Morro do Sabiá também tiveram áreas inundadas, mas em regiões onde não há habitações, por isso foram omitidos.
Notícias veiculadas pela prefeitura e por portais de notícias citavam a quantidade estimada de pessoas atingidas pela enchente: 1,7 mil. Mais de 400 famílias. Com técnicas de geoprocessamento é possível ter uma estimativa mais precisa de domicílios/pessoas atingidas e a distribuição pela cidade, produzindo base de conhecimento para melhores alocação e direcionamento de recursos e esforços no socorro e acolhimento das vítimas.
A ideia é utilizar essas fontes de dados:
- curvas de nível de 1m de equidistância, bairros e lotes (Prefeitura de São Gabriel)
- hidrografia e coordenadas geográficas de endereços (IBGE)
- vias e rotas de ônibus(OpenStreetMap)
Inundação
Carregando a camada de curvas de nível no QGIS, a curva que representa a cota de 91 metros é poligonizada até cobrir o limite norte do bairro atingido mais ao norte (Menino Jesus) e o limite sul do bairro atingido mais a Sul (Bela Vista). Essa curva é escolhida por conta de coincidir com a entrada (coberta pela enchente) da ponte, entre 91 e 92 metros de cota. Assumo que todas a área na cota de 91 metros ou abaixo dela foram atingidos pela água do rio.
Foto de Borin Produções
Os bairros mais atingidos em ordem decrescente:
Bairro | Qtde. de domicílios atingidos |
---|---|
Baltar | 184 |
Menino Jesus | 82 |
Vila Maria | 31 |
Bom Fim | 27 |
Jardim Europa | 6 |
3 de Outubro | 4 |
Total | 334 |
Considerando um domicílio médio com família de 4 pessoas, a estimativa é de 1336 pessoas atingidas só na zona urbana do Rio Vacacaí. Lembrando que números de defesa civil e assistência social são imprescindíveis para complementar esta estimativa.
Para avaliação da gravidade da inundação em diferentes domicílios (levando em conta o nível que a água atingiu no terreno), é feita a interseção da camada de lotes cadastrais com cada uma das cotas do Rio Vacacaí. Começando em 90 metros, um metro abaixo da cota atingida na última cheia, temos inundação de até 1 metro de profundidade, na cota de 89 metros, entre 1 e 2 metros de profundidade e assim por diante. Note que terrenos extensos e íngremes podem ser atingidos por diferentes cotas de alagamento simultaneamente.
Lotes com mais de 1 hectare foram omitidos por representarem propriedades rurais, clubes ou áreas militares.
Profundidade de Inundação | Quantidade de lotes |
---|---|
até 1 m | 86 |
entre 1 e 2 m | 112 |
entre 2 e 3 m | 59 |
> de 3 m | 44 |
Mobilidade
A rota de transporte público mais afetada pela inundação do Rio Vacacaí é a rota circular que liga bairros do extremo leste da cidade com o extremo oeste: Bom Fim - Cidade Nova. Com a ponte Baltar - Bom Fim interditada, o ônibus não consegue atender os bairros Bom Fim, Morro do Sabiá, Medianeira e Pomares dentro de seu trajeto usual e a única solução é fazer o contorno pela Rodovia BR-290, o que torna a viagem mais longa e demorada.
Zona Leste
Separados do Centro da cidade e de muitos dos estabelecimentos básicos de São Gabriel pelo Rio Vacacaí, os bairros do extremo leste e a porção oeste da cidade tem a ponte entre o Bairro Baltar e o Bairro Bom Fim como o trajeto mais curto de ligação. A região leste possui escolas, creches, igrejas, centros de cultura, posto de saúde e estabelecimentos comerciais, tendo um certo grau de autossuficiência. Porém, a interdição da ponte afeta a mobilidade das pessoas que dependem do transporte público para se locomover dentro desses bairros, pois a rota do ônibus, saindo do centro da cidade, é interrompida na ponte.
Caso a outra ligação, pela ponte sobre a BR-290, fique comprometida, o isolamento é ainda mais acentuado. Se necessário atendimento de urgência, o tempo a mais no deslocamento até o hospital no centro da cidade pode fazer toda a diferença. Contabilizando bairros Bom Fim, Morro do Sabiá, Medianeira e núcleo urbano autônomo Pomares, há mais de 1200 domicílios atingidos indiretamente pela interdição da ponte.
Foto de Elmo Neto
Além dos danos emocionais e materiais da necessidade de evacuação de residências diretamente atingidas pelas inundações, há também os transtornos causados indiretamente pela interdição de vias importantes que garantem o direito de acesso à cidade por toda a população. Os problemas decorrentes de inundações na cidade são históricos e as últimas chuvas evidenciaram ainda mais a vulnerabilidade ambiental e climática da cidade que sofre não só com chuvas volumosas, mas também vendavais que costumam causar muitos danos.
Considerações
- Técnicas de clusterização podem ser utilizadas para definir grupos de domicílios atingidos próximos e dividir equipes minimizando deslocamentos entre domicílios atingidos.
- Dados de pluviômetros contribuem para registrar quantos mm de chuva são necessários nos afluentes do Rio Vacacaí para que a sua cota atinja diferentes níveis de severidade de inundação. Com a previsão dos milímetros esperados de chuva, é possível emitir alertas mais confiáveis.
- Geometrias atualizadas de edificações, obtidas por cadastro manual ou segmentação por imagens aéreas/satélite melhora ainda mais a análise, podendo servir, inclusive, como fonte para a estimativa de lonas e telhas necessárias em caso de destelhamento em vendavais.
- Outros cursos d’água que cortam a cidade também transbordam por razões naturais e antrópicas, inundando alguns domicílios. Para análise mais precisa, devem ser levados em consideração. (Nos anos 2000, ainda criança, tive que abandonar minha casa porque ela foi inundada por um desses cursos)
- Os dados do Censo 2010 nos setores censitários das áreas atingidas revelam renda per capita baixa na média dos domicílios, o que torna os danos causados ainda mais dramáticos a essa parcela da população.
- Mais do que resposta a eventos climáticos extremos, o geoprocessamento pode e DEVE ser utilizado para planejamento urbano responsável de forma a minimizar danos emocionais e materiais da população em geral, mas principalmente, das que estão em situação de extrema vulnerabilidade socioambiental.
E por fim…
… toda minha solidariedade ao povo gaúcho, principalmente à Campanha e à Região Central que por anos construíram o que sou hoje. Vamos nos recuperar.
Foto de capa: Renan Mattos, fotojornalista excepcional